Alguns contos de Helena Ortiz são de tirar o fôlego. A velocidade vertiginosa de que consegue dotá-los resulta da supressão primária de pontuações, conectivos e de tudo que poderia engordá-los. A ilusão de urgência torna-se homóloga àquela da sucessão ininterrupta de imagens, em vinhetas e videoclipes, mas só na rapidez. Em significado pode aproximar-se do fluxo de consciência, que buscava a representação do ponto de vista do indivíduo através do monólogo interior perdido, ou em conexão com outras ações. Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, passeia pelas ruas de Londres desenvolvendo monólogo interior contendo personagens, tempos e espaços vários que fazem a estrutura do enredo. Nos contos vertiginosos de Helena o resultado é aturdir o leitor e despertá-lo para o mistério que está ali dentro, escondido, no turbilhão de palavras superpostas. É o caso de “Peluda”, um conto de meia página no qual, com pouquíssimos signos ou símbolos gráficos, conta uma bela história de amor entre uma mulher e seu gato e o prazer que os dois desfrutam em estar juntos. Gato real, mesmo, bichano de pêlo farto e sensualidade exaltada que se transmite ao texto sinuosamente, até molhar toda a página com o prazer que os dois desfrutam por estarem juntos, mulher e gato / gato e mulher, numa maravilhosa e farta, considerada transgressão, que deveria ser muito natural, pois que afinal somos todos animais. Tudo isto contado de um só fôlego, mas conservando a malemolência visceral dos felinos. Considero-o um dos contos mais eróticos que já li. Aliás, esse estilo descarnado de pingentes é a maneira dos cegos verem a realidade. E Helena, de certo modo, trabalha essa idéia como um depoimento sobre sua própria expressão literária, também veloz e instantânea, no conto a que deu o título de “Diagnóstico”, uma narrativa sobre alguém que, progressivamente estaria perdendo a visão. Ao contrário de Saramago, que mostra o drama coletivo vivido por uma sociedade de cegos, esta cegueira individual progressiva parece até uma benção, pois permite ao ser humano aprimorar novas formas de conhecimento da realidade e da sobrevivência. Uma circunstância que promove descobertas, até mesmo no processo criativo da literatura: “Nas retinas, o teclado permite certa contemplação para o único. Os olhos abertos não vêem as palavras, mas a clareza delas se espraia pelos dedos, pelos pulsos, impulsiona um exercício novo... Branco papel palavras precisas. Vão-se os acentos maiúsculas aspas travessões importa que escrevo e me entendes. O esforço não é mais para as palavras, que elas chegam claras e ainda são acariciadas ao som do dicionário. O esforço é a forma do registro. Hoje em dia você pode falar com o computador. Mas acontece que eu não falo. Escrevo.”
Não é um conto de amor, mas uma metáfora de recusa ao prosaico, ao banal da realidade de uma vida sem surpresas. Cultiva a clarividência a que se pode atingir através do escuro, da renúncia ao real, um dos enigmas que a autora persegue em sua trajetória poética.
Outro conto, desta vez não de amor, de terror, também representativo desse poder de transmitir o mistério que existe por detrás de palavras reunidas de maneira peculiar, invenção formal da narrativa de Helena, chama-se, não por coincidência, “Milagres”. O milagre da recuperação do amado perdido para a morte, e devolvido à vida pelo sonho, alucinação, fantasia ou coisa que o valha, maravilhosa sensação que transforma em natural um fenômeno impossível de acontecer no plano do real. É o que acontece à protagonista deste conto insólito, que concede ao leitor o privilégio de com ela compartir toda a alegria inicialmente desfrutada: quando ao abraçá-lo em pensamento, “primeiro como se fosse imaterial, mas na medida em que o ia acariciando se tornava cada vez mais palpável e nítido e de repente falou e então era como se fosse e até já era mesmo porque levantamos e começamos a viver nossa vida de antes.
Até que vieram as baratas.”
Deste momento em diante a narrativa transforma-se em legítimo exercício de terror e crueldade até o seu final , que não é muito longínquo, pois como todos os outros, o conto é curto e verossímil, e traz a marca de implacabilidade de muitas outras estórias de Helena Ortiz, uma contista que transfere para a prosa muito do seu estilo poético, curto, enxuto, mas profundo, não no que diz de maneira explícita, porque seu texto nunca é explícito, e nisto está a sua força. Em relances de clarividência atinge os mistérios que só podemos ver com olhos semicerrados. Assim como Sylvia Plath via a realidade sempre através de epifanias, milagres no ato de ver.
Márcia Cavendish Wanderley
Helena Ortiz é poetisa, contista, cronista, nasceu em Pelotas, e formou-se em Jornalismo no Curso de Comunicação. Taquigrafa de profissão e desde cedo atuou no jornalismo escrevendo para jornais de Pelotas e depois Porto Alegre, para onde se mudou em 1985. Escreveu colunas para sManteve coluna de onde manteve colunas de crônicas. Tem oito livros publicados, organizou a antologia de poesia Sete Vozes e dirige a Editora da Palavra. Editou, de 1999 a 2005 o jornal impresso panorama da palavra, que seguiu virtual em www.panoramadapalavra.com.br e retornou em 2009 novamente impresso. Organizou durante cinco anos o Panorama da Palavra, evento de poesia oral do qual participaram cerca de 400 poetas, na Casa de Cultura Margarida Rey, em Copacabana, e depois no Teatro Candido Mendes, em Ipanema.
Organizou os concursos Panorama da Palavra – Prêmios Astrid Cabral e Marco Lucchesi e três recitais de poesia na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, em homenagem a Federico Garcia Lorca, Carlos Drummond de Andrade e Manoel de Barros, e inúmeros outros eventos em diferentes lugares do Rio de Janeiro.
Tem poemas publicados em várias revistas, jornais e sites de poesia e mantém o blog http://www.integradaemarginal.com/
Livros publicados:
Pedaço de mim (Ed. T& T, 1995)
Margaridas (Ed. Blocos, 1997)
Azul e sem sapatos (Ed. Blocos, 1997)
Em par (Ed. da Palavra, 2001)
Sol sobre o dilúvio (Ed. da Palavra, 2005)
Baseado em quê? 2009
O silêncio das xícaras (Ed. da Palavra, 2009)
Baseado em quê? Volume II
LANÇAMENTO
08/06/2010
Livraria Vanguarda
Rua Gonçalves Chaves, 374/2
(53) 3027-1234
Pelotas/RS
Divulgação: Agência da Arte
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